sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Só pensam naquilo

"Eu queria o olhar dos cegos, para ver
As coisas invisíveis e as coisas tocadas pelo Espírito.
Eu queria, por um momento, o olhar dos cegos,

Para distinguir as luzes e para ver a luz pura e única"
(Augusto Frederico Schmidt)

Vivemos momentos difíceis no entendimento da fé cristã. Os valores que os apóstolos passaram nos escritos do Novo Testamento perderam sua validade neste mundo pós-moderno. O Deus sagrado, misterioso, abscôndito, invisível, que falava ao coração, com voz mansa e quase imperceptível, que era buscado em meio a lágrimas e súplicas em madrugadas silentes, esse Deus desapareceu e modernizou-se. Hoje se tornou comum líderes conversarem com Ele, assim normalmente, numa espécie de "viva voz", e Dele ouvirem ordens e sugestões.

Mudou também a compreensão da Bênção Divina na vida de seu povo. Antes ela era reconhecida pela paz de espírito, pela singeleza e pela alegria. Já não vemos mais ninguém dizendo: "Estou mais humano.... leio mais poesia.... aprendi a ouvir.... relaciono-me melhor com as pessoas.... não penso somente em mim.... sinto alegria comendo o meu pão de cada dia... agradeço a Deus em todas as coisas...".

Agora, bênção dos céus precisa ter materialidade: avivamento mede-se em número de pessoas que a igreja ganhou e não pela qualidade de vida gerada, e prosperidade é conferida pela conta bancária e pelo tipo de veículo automotor que possui, numa deturpação da visão do Antigo Testamento em que rico é o que tem muito (camelos, ovelhas, terras). Só não compraram a idéia de ter muitos filhos ("feliz os que enchem deles a sua aljava").

Sob qualquer ótica de análise do comportamento humano, entende-se que é patológico, é doentio, quando somos dominados por uma irresistível compulsão de idéias e pensamentos fixos, que é diagnosticado como obsessão. Certamente Deus não quer um povo que só pensa "naquilo". E esse "aquilo" é da pior espécie, pois se trata de uma perversão espiritual, uma inversão dos pressupostos bíblicos do que é riqueza de vida, e transforma em fetiche aquilo que deveria ser secundário.

Peguemos uma frase-símbolo desse modo de pensar: "Deus é fiel". Sem dúvida que Ele é. Entretanto, Ele não é só isso, é também um Deus de justiça, misericórdia, Deus que vê, julga, e deseja um relacionamento sadio com seus filhos. Essa frase não foi pinçada aleatoriamente da bíblia, ao contrário, ela é paradigma da visão deturpada de nosso tempo. Já vi inscrita até na porta de bares. Há uma ponta de vaidade nas Hilux, Toyotas e Pick-Ups reluzentes que ostentam a inscrição que aponta para a suposta fidelidade de Deus aos seus donos. É como se dissessem: "Tá vendo? Ele não podia deixar de fazer isso para mim". Virou uma espécie de "abra-te-sésamo" espiritual, e dependendo de quem a utiliza, chega a soar como uma cobrança: se Ele diz que é fiel, Ele tem de cumprir.

Pensemos nos seguintes casos hipotéticos: Seu amado perdeu o avião que se acidentou.... Você foi promovido e o seu salário dobrou... O resultado do exame médico foi negativo.

Qual a conclusão óbvia? Ora, se eu ganhei, recebi, alcancei, aumentei, restituí, logo concluo que Deus é fiel ao seu "chapa" aqui na Terra.

Muito bem, vamos caminhar um pouco mais, agora apontando para o lado oposto: Seu amado estava no avião da tragédia... aquela promoção tão esperada foi para um colega menos competente.... e os seus piores temores se confirmaram nos exames: deu "positivo".

Deixou Deus de ser fiel? Caducaram suas promessas? Cessou a sua Graça? Esqueceu o Eterno de ser benigno? Deus também não é fiel no câncer, na solidão, no desprezo, na humilhação, no despojamento, nos fracassos, nas frustrações, na impotência?

A Bíblia diz que Deus pode transformar o mal em bem e suscitar força da fraqueza. Deus efetiva a sua vontade até naquilo que a Ele se opõe. A fé na providência de Deus não significa que o homem esteja livre da dor: "nada pode nos separar do amor de Deus".

Quem só vê a mão divina nas coisas materiais, nos ganhos, no sobejar, quem aprendeu que Deus existe para lhe servir, terá grande dificuldade em lutar com as adversidades, em caminhar de mãos vazias, em orar e não obter as respostas que deseja. Já vi muita gente abandonar a fé por ter uma visão deturpada do Pai. Já vi muita gente esperando a "sorte grande" chegar e, como ela nunca chegou, desistiu de tudo.

Quando pastores usam malandramente o Antigo Testamento tem-se a impressão que Deus só age favoravelmente depois que recebeu os sacrifícios, dízimos, rituais, bom comportamento, e tudo o mais que eram "sombras das coisas que haveriam de vir".

Nada pode tornar Deus mais fiel do que Ele já é. A fidelidade de Deus não depende da minha: "Se somos infiéis, Ele permanece fiel" (2Tm 2.13). Deus manteve-se fiel aos Seus eternos propósitos mesmo a um Davi adúltero, a um Abraão mentiroso, a um Pedro praguejador. Ninguém recebe algo do Senhor por mérito, pois todos somos incapazes de satisfazer as exigências do Pai de termos uma vida totalmente agradável a Ele. Se fôssemos pagos com base na justiça, "todos iríamos parar no inferno" (Philip Yancey). Na verdade, todos nós fracassamos com Deus.

Tudo o que recebo, tudo o que tenho e sou só tem existência porque "Deus é Graça". A Graça independe de mim, só do Eterno. A Graça agrega uma palavra belíssima - a misericórdia - e eu preciso de misericórdia de Deus todos os dias. Só os tolos acham que merecem alguma coisa. Quando Deus permitiu a Davi escolher um dos três castigos que lhe apresentou, ele não titubeou: "prefiro cair nas mãos do Senhor porque muitas são as suas misericórdias" (2Sm 24.14). Só é abandonado à própria sorte o obstinadamente orgulhoso espiritual.

Jesus disse que o seu Reino não é deste mundo, mas os crentes gospel mergulharam de cabeça nele. Paulo pediu para pensarmos "nas coisas lá do Alto", mas os modernos cristãos preferem pensar "naquilo"...

Pr. Daniel Rocha, psicólogo e pastor metodista

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